sábado, 19 de março de 2011

Um testemunho...

A “Ana” está no segundo ano num curso superior do Instituto Politécnico do Porto. No primeiro ano candidatou-se a bolsa de estudo. É uma pessoa com muitas capacidades e com uma grande vontade de apostar na sua formação, mas tem bastantes dificuldades económicas. Vive com a mãe, que trabalhava por conta própria como costureira em casa. O salário dela nunca era certo todos os meses, e nos últimos anos os clientes começaram a falhar no pagamento dos serviços. Foi obrigada a cessar actividade na Segurança Social, porque o que descontava não chegava para pagar as despesas da casa e ajudar a filha. O pai está inválido (sofreu uma trombose e ficou sem capacidades para trabalhar) há cerca de 21 anos. É uma pessoa já idosa e com uma mentalidade complicada, e não divide a sua pensão de invalidez com restante família. O irmão, que vive com eles, tem perto de 30 anos, trabalha e paga um valor à mãe que dá para a alimentação.

A “Ana”, para poder ir estudar, depois de completar o 12º ano trabalhou durante um ano numa fábrica de sapatos como gaspeadeira. Descontou para a Segurança Social e preencheu a declaração de IRS. Conseguiu juntar dinheiro para concorrer à faculdade e sobreviver os primeiros meses. Através de contactos de amigos, foi possível encontrar um local para morar no Porto, e está a dividir quarto com mais pessoas, sendo assim a renda mensal mais acessível. Soube que o resultado à sua candidatura para bolsa tinha sido positivo só no início do segundo semestre, e os serviços de Acção Social aconselharam-na a candidatar-se ao Rendimento Social de Inserção, devido à sua situação precária. Teve direito a bolsa e RSI, que era suficiente para pagar propinas e para todas as despesas inerentes ao ano. Como o curso da “Ana” é na área de letras, conseguiu apostar ainda mais na sua formação e inscreveu-se em cursos extra-curriculares de Inglês e Espanhol.

Com a implantação das medidas de austeridade, no início do ano lectivo, o valor de RSI atribuído à “Ana” reduziu e em Dezembro ela perdeu o direito a este rendimento. O resultado da bolsa saiu em Fevereiro e o valor desceu para metade. A “Ana” ficou em pânico, porque o valor mensal que lhe atribuíram de 195€, que corresponde a um valor anual de 1950€. Subtraindo o valor de propinas que é, actualmente, de 900€ resta-lhe 1050€ anuais, ou seja, uma média de 95€ por mês em 10 meses. Com este dinheiro tem de dar para pagar renda de casa durante 11 meses, transporte, alimentação, cursos de línguas, e outras despesas da “Ana”, como saúde, roupas, calçado, etc… A explicação para o valor da bolsa ter diminuído tanto foi o ter entrado para os cálculos de atribuição a declaração de IRS de 2009, ano em que “Ana” trabalhou, ou seja, para o cálculo foi contabilizado um aumento valor dos rendimentos do agregado. A “Ana” entrou no ensino superior em Setembro de 2009, e a partir daí não trabalhou, até agora. Também para o cálculo não foi tido em conta a perca do direito do RSI, apesar de “Ana” o ter declarado.

A “Ana” teve de arranjar uma solução para não desistir do curso de três anos. Está neste momento a trabalhar ao fim-de-semana, num hotel, sem contrato e sem descontos, pois se o fizesse, isso teria interferência no valor da bolsa. Pagavam-lhe 4€/hora, e ela chegava a fazer 10horas por dia. Este último mês, o patrão combinou com ela que o pagamento agora seria diferente: receberia 180€/mês, independentemente das horas que trabalhar (no fim-de-semana).

Só assim “Ana” irá conseguir acabar o curso. Sente-se mal porque a mãe cessou actividade mas na prática continua a ter de fazer “biscates”, e porque está se encontra a trabalhar tantas horas na situação que é, roubando-lhe os fins-de-semana tão preciosos para se dedicar aos estudos.
Por outro lado, “Ana” conhece colegas na faculdade em que sabe que pais são industriais ou patrões de fábricas que dão actualmente lucro, com bons carros e caros, que moram perto da faculdade, e que concorreram à mesma bolsa que ela, tendo sido esta atribuída, e em certos casos, o valor é semelhante ou maior que a bolsa dela.

Este ano, com os cortes do Estado aos apoios sociais, houve alterações nos critérios de atribuição das bolsas de estudo e novas leis foram criadas.
Estas deveriam apoiar os casos mais necessitados, diminuindo os valores das bolsas mais altas (que muitas vezes eram escandalosas) e acabando com as bolsas atribuídas a pessoas com mais bens e maior capacidade financeira. Para isso deveria existir uma maior fiscalização, e uma maior análise caso a caso.

Segundo o Despacho n.º 14474 / 2010, alunos que o ano anterior (2009-2010) foram bolseiros, e desde que nos termos da legislação aplicável mantenham o direito a prestações sociais, não se verificando variações positivas ao rendimento superiores às definidas nas normas técnicas, é lhes garantido, pelo menos, o valor da propina.
Este artigo permite às pessoas que o ano passado tiveram o valor mínimo de bolsa continuem a ter direito a essa.
Então, com todos estes cortes, não se deveria tirar aos “mais ricos” e distribuir pelos “mais pobres” para que todos possam estudar?

Não é de esperar que casos como o da “Ana” sejam os prioritários?

3 comentários:

Anónimo disse...

Infelizmente isto acontece cada vez mais!

Actualmente a minha mae encontra-se desempregada. O meu pai tem uma pequenissima empresa, mas que nao consegue resistir a tantos impostos, mesmo chegando a trablhar entre 12/15 horas diarias. O meu pai nao recebe para poder pagar ao empregado e as restantes despesas da fabrica. Portanto sobra o fundo de desemprego para 4 pessoas ca em casa. O meu irmao neste momento estuda e eu trabalho em part-time. Gostaria de me candidatar este ano para a universidade, mas o unico sitio onde existe o curso que quero tirar e' em Lisboa. Fizemos as contas e as despesas rondariam os 400€ por mes, ja a cortar e a apertar o cinto! Com isto, como podem ver, tenho uma soluçao: como nao tenho pais ricos vou ter de ir ao BEJ!!? Nunca tive direito a subsidios e duvido que va ter direito a bolsa, ou pelo menos direito a um valor que de facto me possa ajudar a sobreviver pelos ados da capital! Possivelmente, vou ser mais uma "Ana" que tera de se sujeitar a empregos ilegais e precarios aos fins-de-semana para poder prosseguir com os estudos. Entretanto ca vou eu trabalhando para poder juntar algum, que contribuira para que eu receba um valor menor da bolsa LOL ???

Força Ana!

Unknown disse...

Eu acredito que é na partilha das nossas angustias que percebemos que existem mais parecidos connosco, seja qual for a nossa situação!

E desta forma percebemos que não estamos assim tão isolados e que mais facilmente conseguimos alargar prespectivas e quem sabe até aliviar a percepção que temos, ganhando assim mais coragem!

Falar das dificuldades pode não resolvê-las no imediato mas pode ser o caminho para encontrar ajuda!

Pela Dignidade de todos!
Beijinhos

Anónimo disse...

Olá,

O caso da "Ana" não é mesmo o único e existem muitas mais situações injustas por este país fora.

Contudo acho que a lição a tirar deste testemunho é que a "Ana" não desistiu e tenho a certeza que não vai desistir, pois só assim se consegue alguma coisa. A "Ana" não é mais uma jovem à rasca, mas sim uma jovem à rasca que luta e faz tudo para conseguir os seus objectivos. Se houvessem mais "Anas" neste país talvez o país não estivesse como está... É só uma reflexão...

Beijinhos,
Patrícia Soares

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